Repostando a estréia dos integrantes do LUTAS, os colaboradores externos Rodolfo e Guilherme, como colunistas mensais do blogue da Assessoria Jurídica Popular. Em "Direito, delírio, experiências e coisas reais", os autores buscam olhar o direito de forma diferente, tentando conhecê-lo a partir de sua carnavalização. A seguir, copiamos o texto originariamente publicado semana passada, dia 15/04/2015, aqui.
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Este pequeno texto não é o nosso
primeiro neste blogue. Em nossa primeira e recente experiência, tentamos
expressar um pouco das angústias e conhecimentos que brotam da práxis
extensionista de uma AJUP universitária.
Aqui, marca-se o início de uma nova
caminhada. Agora advogados, neste início de ano passamos de graduandos à
condição de colaboradores externos do LUTAS (UEL) a AJUP que há três anos ajudamos a
construir em Londrina/PR. Assim nos tornamos dois jovens recém-graduados que
não conseguem, porém, enxergar-se de modo algum como formados em direito.
Como fazê-lo, afinal, se a cada experiência, a cada dia, a cada delírio, sempre
crescem mais e mais as perguntas diante desse estranho objeto que é o fenômeno
jurídico?
Foi nesse momento de transição pessoal
que, com muito prazer, aceitamos o convite de escrever uma coluna e, assim,
contribuir com este espaço de crítica e formação.
Nossas intervenções aqui serão mensais.
E, assim como em nosso primeiro texto, nosso objetivo será o de problematizar
questões vivas, cotidianas, provocar debates e reflexões e, com isso, desafiar
o direito a ser desmistificado a partir do real. Daí o nome da coluna: Direito,
delírio, experiências e coisas reais.
Começaremos falando sobre o que
representou e representa participar de uma AJUP a esses dois caminhantes de
primeiras viagens. Parece a nós que a grande vantagem da extensão universitária
em relação ao ensino superior “tradicional” sempre foi o pisar no
desconhecido. Longe das salas de aula e dos livros, o concreto das relações
sociais desafia muito mais o estudante em sua dinâmica cognitiva. Nesse
sentido, é possível perceber que a experiência ajupiana cinde-se inevitavelmente
em dois momentos, complementares, mas distintos entre si: 1) trabalhar com o
direito e com as demandas das comunidades assessoradas em conjunto com elas; e
2) pesquisar o direito como objeto do conhecimento humano, especialmente a
partir dessas mesmas experiências práticas.
Bakhtine, acima, autor do conceito de carnavalização como critério de interpretação literária. |
No primeiro desses momentos, no qual se
desenrolam as atividades de assessoria jurídica propriamente ditas, as
experiências são geralmente intensas, urgentes, impactantes, angustiantes, nos
fazem chorar e nos desesperam. Ao final, voltamos para casa com a sensação de
que seria necessário fazer mais, muito mais. Mas, sobretudo, é inegável que
voltamos para casa diferentes. As marcas de nossos sapatos na extensão, que
foram por um momento vivas, agora já vão se vertendo em pequenas memórias. E
essas, ao se decantarem em nossa consciência, finalmente reviram toda a
constelação teórica sobre o direito que carregávamos dentre os muros da
graduação. Em poucas palavras: apreender o direito pelos olhos de uma AJUP
inevitavelmente significa carnavalizá-lo, escancarar as suas mais íntimas
contradições e, ao final, enfrentá-lo como algo palpitantemente estranho. E
assim chegamos ao segundo e desafiante momento de uma AJUP universitária:
pesquisar o direito, esse direito ao avesso e desafiante, esse direito carnavalizado e crú que acaba de
ser apreendido na prática extensionista.
A carnavalização não poderia
tornar possível
a criação da estrutura aberta,
da grande polifonia,
contra os costumes gnosiológicos
que deixam os juristas
com sua consciência em paz?
Luis Alberto Warat 1
Capa do álbum Alucinação (1976), de Belchior |
Lançados nessa aventura de brilho e
escuro, sombra e luz, ao integrarmos uma AJUP vivemos essa intensa alucinação, semelhante a de um jovem Belchior que, logo no início de seu álbum de 1976,
afirmava a condição histórica de ser um apenas rapaz, latino americano, sem
dinheiro no banco, e vindo do interior, já denunciando, ao mesmo tempo, a
incômoda contradição imposta pelo antigo compositor baiano que dizia tudo é
divino, tudo é maravilhoso...
Também percorremos nossa própria
alucinação na graduação, conhecendo por meio de simplificações de sala de aula
aquilo que viria a ser o direito. Até que podemos, em dado momento da
graduação, dar dois grandes gritos, ainda que prematuros. O primeiro deles veio
da desilusão: nada é divino, nada, nada é maravilhoso, nada é sagrado, nada,
nada é misterioso, não.
Já o nosso outro grito, esse que ainda
amadurece em nós, vem da puberdade de nossa alucinação, como o cantor ao
chegar à faixa central de seu disco: o grito de já não estar mais interessado
em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. O que nos
interessa, agora, são justamente todas as coisas concretas, narradas nos versos
seguintes da música, versos carregados de cotidianidade (jeans, motocicleta,
violência, tráfego, pessoas cinzas normais) que chegam a passar despercebidas
até a chegada do refrão novamente.
Curiosamente, após o ápice do álbum
representado nessa música que lhe dá o nome, o poeta-advogado destina as quatro
canções finais, já em musicalidade mais densa e de prosa entristecida, para
falar do passado, presente e futuro. Alerta para o delirante não cantar
vitória muito cedo não (Não Leve Flores); anuncia as mudanças em um
passado que não nos serve mais (Velha Roupa Colorida); retrata sua
pesada caminhada, de sonho, de sangue e de América do Sul (À Palo Seco);
e tem a certeza que aflora da pele do retirante de que nada é divino nem
maravilhoso para aquele que vem do Norte (Fotografia 3x4).
Como o compositor cearense, que deixa o
futuro para a última canção do álbum, Antes do Fim, nós o fazemos igual.
Regredindo ao estranhamento do direito
após a carnavalização da ordem jurídica pelos delírios do real, nos
perguntamos: será que aí, nesse caos instaurado, poderá abrir-se a
possibilidade de transformar o velho, aquelas falsas percepções sobre o
direito, em algo novo e verdadeiro?
Talvez.
Talvez seja esse o misterioso local
onde, pelo esforço do delírio, poderemos conhecer teoricamente o direito. Essa
será nossa aposta: arriscaremos aprender a delirar com as coisas reais,
arriscaremos nos entregar a esses delírios como negação do retorno ao velho
antigo. Apostaremos em, assim, nos reaproximarmos do direito, depois de
carnavalizá-lo, como objeto pensado, agora enfim a partir das experiências
concretas.
Pelo olhar dos olhos do povo,
dissipadas as nébulas de suas mistificações, o nosso compromisso será com
aqueles que sofrem nas mãos da ordem posta, com os pretos, pobres, mulheres,
discriminados, estudantes, humilhados do parque e todos os trabalhadores… Essa
será a nossa aposta epistemológica. Essa será a subida ao mirante2
mais elevado para observarmos as determinações concretas que permeiam a nossa
sociabilidade e o direito dentro dela. Eis o método pelo qual o delírio nos
regredirá ao concreto. Eis o método pelo qual esperamos, enfim, encontrar o
direito nas coisas reais...
“E a única forma que
pode ser norma
é nenhuma regra ter;
é nunca fazer nada que o mestre
mandar.
Sempre desobedecer.
Nunca reverenciar.”
Belchior, Como o diabo gosta
Reservamos a esses últimos parágrafos
uma nota indesejada, cujo motivo ainda nos é difícil aceitar. Não poderíamos
terminar o texto sem reservarmos suas linhas finais a um rapaz, latino
americano, pai, que no dia 13 de abril de 2015 deixara órfãos seus versos e
poesias. Eduardo Galeano, poeta que também sonhava a partir de coisas reais,
que era capaz de mirar lo que no se mira, pero lo que merece ser mirado,
coincidentemente nomeara uma de suas poesias pelo nome de El derecho al
delírio, declamada no vídeo logo abaixo.
Por ocasião de sua partida, assumimos
então mais um compromisso com o advento desta coluna, um compromisso galeano:
qualquer que seja a nossa busca, o de sempre poetizar a vida e a escrita com
simplicidade, sem perder de vista os sonhos, nem o contato com o real.
¿Que tal si deliramos por un ratito?
¿Que tal si clavamos los ojos, más alla de la infamia
para adivinar otro mundo posible? 3
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(1) WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura
surrealista pelos lugares do abando do sentido e da reconstrução da
subjetividade. Vol. I. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
(2) Ver LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de
Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 7. ed.
São Paulo: Cortez, 2000.
(3) GALEANO, Eduardo. Patas arriba. Madrid: Centro Bibliográfico y Cultural: 1998.
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